Com grande pena minha, não consegui encontrar a data de emissão original de Cosmos na RTP. Sei que foi emitida pela PBS nos Estados Unidos da América entre Setembro e Dezembro de 1980, portanto desconto um pouco para Portugal. Deveria ter 7 ou ou 8 anos em 1981/82.
Foi
ao ver Cosmos, e descobrir Carl Sagan, que fiquei fascinada, real e
absolutamente fascinada pela ciência, e que passei a estar mais interessada em
astronomia do que em ser astronauta... Afinal há um universo inteiro por
explorar, uma história do homo sapiens por descobrir, sequências de
pares de bases no DNA por descobrir.
Descobri
que saber mais é viciante e intrigante. Cosmos brindou-nos com imagens e
efeitos especiais topo de gama para os anos oitenta (e envelheceu suavemente e
brilhantemente como um bom Porto). Carl Sagan inspira-nos a saber e a procurar.
Não
é o meu herói, porque penso nesse “título” como algo um pouco redutor. É sim
uma das pessoas que mais admiro, não só pela capacidade de explicar temas
complicados a uma plateia televisiva, mas por todo o seu percurso de vida.
Carl
Edward Sagan nasceu a 9 de Dezembro de 1934, em Brooklyn, Nova Iorque, filho
mais novo de Samuel (emigrante russo) e Rachel, irmão de Carol. O pai
trabalhava na indústria de vestuário, a mãe era dona de casa. Embora com poucos
meios, sempre estimularam a curiosidade inata de Carl e o seu gosto por
aprender.
Nas suas memórias de infância, que descreve
nalguns dos seus livros, Sagan relembra a visita à Feira Mundial de 1939 (em
Nova Iorque), com a exibição America of Tomorrow ( espelho do futuro,
mostrando os primórdios da televisão, por exemplo). Destaca também as visitas
ao Museu Americano de História Natural e ao Hayden Planetarium (em
Manhattan).
Nos
tempos livres ia para a biblioteca publica ler livros sobre as estrelas, ou
instalar sets de química dados pelos pais (acabou por ter um laboratório em
casa). Descobriu também a ficção científica, através de H.G.Wells ou
Edgar Rice Burroughs. A cereja no topo do bolo seria a revista Astounding
Science Fiction.
Estavam reunidas as condições para formar
um cientista. Sendo um aluno brilhante no liceu, Sagan interrogava-se se a
Astronomia podia ser uma profissão de futuro ou apenas um passatempo. Com a Space
Race prestes a começar, acreditou que sim.
No fim do liceu escreveu um ensaio onde
questionava se o contacto humano com formas de vida avançadas de outros
planetas poderia ser tão desastroso para os terrestres como tinha sido para os
Nativos Americanos o primeiro contacto com os Europeus; apesar do assunto
controverso, a sua capacidade retórica valeu-lhe o primeiro prémio.
Estudou
Física na Universidade de Chicago, onde se licenciou, concluiu o mestrado e o
doutoramento. Trabalhou com o geneticista H. J. Muller (Nobel da Medicina em
1946, pela descrição dos efeitos das radiações em mutações genéticas) e com o
bioquímico Harold Urey (Nobel da Química, 1934, pela descoberta do deutério),
tendo colaborado no seu trabalho pioneiro
sobre a origem da vida (“sopa primordial”).
A
sua tese de doutoramento, Physical Studies of Planets, foi submetida ao
Departamento de Astronomia e Astrofísica, em 1960, e teve como orientador
Gerard Kuiper (considerado o pai da ciência planetária moderna).
Para
além de uma extraordinária capacidade de aprendizagem, Sagan teve a sorte de
privar com os cientistas mais conceituados do início da segunda parte do século
XX, assim como na criação da NASA desde o seu início. Tal como Newton, vê mais
longe, subindo aos ombros de gigantes.
Entre
1960 e 62 foi bolseiro na Universidade de Berkeley, Califórnia. Até 1968 foi
Professor Assistente na Universidade de Harvard e no Observatório Smithsonian,
em Massachusetts. Finalmente, e até à sua morte, foi Professor e Director do
Laboratório de Estudos Planetários na Universidade de Cornell em Nova Iorque.
Em
1961 publicou um artigo na revista Science, sobre a atmosfera de Vénus,
sugerindo que esta seria seca e muito quente devido a um forte efeito de estufa
(contrariamente ao pensado na altura). Colaborou com o Jet Propulsion Lab
nas primeiras missões Mariner a Vénus, que confirmaram as suas conclusões.
Foi
conselheiro da NASA também nas missões Apollo e na construção e desenvolvimento
de várias sondas robóticas enviadas na exploração do Sistema Solar. As sondas
Pioneer 10 e 11 (1972/73) transportam
placas de alumínio anodizado com informações acerca da origem das naves.
As
sondas Voyager 1 e 2 (1977) transportam também um disco áudio-visual banhado a ouro,
com fotografias da Terra, suas formas de vida, informações científicas,
saudações em 55 línguas, “sons da Terra” que incluem sons de baleias, um bebe a
chorar, ondas a baterem na costa e uma colecção de música, incluindo Bach,
Mozart, Chuck Berry e músicas indígenas de todo o globo.
A
missão primária das Voyager foi o estudo de Júpiter e Saturno, caminhando
depois para o espaço exterior. Quando a Voyager 1 passou por Saturno em 1980,
Sagan propôs que a sonda tirasse uma ultima fotografia da Terra, sabendo que
não teria grande valor cientifico, uma vez que a Terra estaria demasiado longe
para as câmaras da Voyager captarem algum detalhe, mas seria muito
significativa como maneira de por em perspectiva o nosso lugar no universo.
Em
14 de Fevereiro de 1990, antes de desligar permanentemente as câmaras
fotográficas, a 6 biliões de quilómetros da Terra, a Voyager tirou a colecção “Family
Portrait” do Sistema Solar, entre as quais o célebre Pale Blue Dot.
Poderia
continuar a falar de feitos científicos por vários artigos mais. Carl Sagan era
também um cientista com vários objectivos: a partir da descoberta do efeito de
estufa em Vénus, voltou-se para o mesmo efeito na Terra, e para os efeitos do
aquecimento global; foi contra a escalada nuclear entre os EUA e a então URSS,
tendo cunhado a expressão “inverno nuclear”; foi pioneiro na pesquisa de vida
inteligente fora da Terra, tendo fundado o SETI (Search for Extraterrestrial
Intelligence), que colocou activamente radio-telescópios a “ouvir” o
universo (e as mensagens que ele possa enviar).
Mas
tudo isto não passa de um resumo. Carl Sagan escreveu vários livros, “devolveu”
a ciência
aos leitores
ávidos, foi um eterno optimista, curioso e céptico, três características
fundamentais para estudar, experimentar, descobrir e repetir de novo.
Estamos numa altura em que a ciência é
negada diariamente, não porque seja difícil, mas porque é inconveniente. Porque
não dá as respostas que se quer. Porque não cabe nas pesquisas do Google.
Porque não é um sistema de crenças, mas um sistema de conhecimento que se vai
aperfeiçoando. De alguma maneira, a ciência para uma grande plateia tornou-se
algo escasso. Os dados tornaram-se herméticos e a população demasiado
convencida que a lei da internet é mais forte.
Precisamos de divulgação e de alguém que
nos relembra, de novo, o nosso lugar no Universo. God Speed,
Carl.
Contributos para Carl Sagan versão 2.0:
“Nós
conseguimos tirar essa fotografia (a partir do espaço profundo), e se olharem
para ela, verão um ponto. É aqui. É a nossa casa. Somos nós. Nele viveram as
suas vidas todas as pessoas de que já ouviram falar, todos os humanos que
alguma vez viveram. A soma de todas as nossas alegrias e sofrimentos, milhares
de religiões confiantes, ideologias e doutrinas económicas, todos os caçadores
e presas, todos os heróis e cobardes, todos os criadores e destruidores de
civilizações, todos os reis e camponeses, todos os jovens casais apaixonados,
todas as crianças esperançosas, todas as mães e pais, todos os inventores e
exploradores, todos os professores de moral, todos os políticos corruptos,
todas as super estrelas, todos os líderes supremos, todos os santos e pecadores
da história da nossa espécie, viveram lá, num punhado de poeira, suspenso de um
raio de sol.
A
terra é um palco muito pequeno numa arena cósmica vasta. Pensem nos rios de
sangue jorrados por todos os generais e imperadores, para que em triunfo e
glória se pudessem tornar os donos momentâneos de uma fracção de um ponto.
Pensem nas crueldades intermináveis infligidas por habitantes de um canto do
ponto, a habitantes, praticamente indistinguíveis, de outro canto do ponto.
Quão frequentes são os seus desentendimentos, quão desejosos estão de se matar
uns aos outros, quão fervorosos os seus ódios. Os nossos maneirismos, a nossa
auto-importância imaginária, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no
universo, são desafiados por este ponto de pálida luz.
O
nosso planeta é um solitário ponto na grande escuridão do cosmos envolvente. Na
nossa obscuridade – em toda a sua vastidão – não há nenhuma pista de que possa
vir ajuda de algum outro lado para nos salvar de nós próprios. Só depende de
nós. Costuma dizer-se que a astronomia é uma experiência de humildade, e, posso
acrescentar, que é formadora de carácter. Na minha mente, não haverá talvez
melhor demonstração da loucura dos conceitos humanos que esta imagem distante
do nosso pequeno mundo. Para mim, sublinha a nossa responsabilidade de lidar com mais
gentileza e compaixão uns com os outros para preservar e prezar esse pequeno
ponto azul, a única casa que alguma vez conhecemos.”
Carl
Sagan, discurso na Universidade de Cornell, 13 de Outubro de 1994