Mote:
"um
povo de escravos e de reis construiu uma civilização sumptuosa e
esmagadora, onde, a cada passo, os vivos são convocados ao mundo
subterrâneo dos mortos"
Miguel
Sousa Tavares
Quatro
graus centígrados à sombra, a fugir de cadáveres tornados
fantasmas, cianosados e lívidos. O seu próprio reflexo na água que
o rodeava. Percebeu que não conseguiria fugir. Estava demasiado
frio, demasiado escuro, demasiado peso a latejar na sua
cabeça.
Automaticamente martelou na escotilha SOS durante
mais de uma hora. Doía-lhe o corpo todo, não só do embate que as
explosões tinham provocado em toda a embarcação e que o tinham
projectado uns bons metros a uma imensa velocidade contra algumas
estruturas metálicas bastante duras, como também da brutal
velocidade do afundamento, que lhe causara vómitos incontroláveis,
à medida que via os corpos dos seu companheiros serem levados pelas
águas.
Doía-lhe o corpo de uma hora de esforço quase em
apneia. Tossia e sentia os pulmões saírem-lhe pela boca. Era inútil
continuar, ninguém o ouviria. Quando alguém os descobrisse estariam
todos mortos…Já não faltaria muito. Era inútil tentar aquecer-se
fazendo qualquer tipo de exercício, porque ficaria ofegante e tonto
pela falta de oxigénio. Tinha encontrado um local onde se refugiar,
ironicamente perto da escotilha que não lhe permitia a salvação. O
nível da água tinha parado de subir. Era uma questão de tempo. Um
marinheiro nunca abandona o seu posto. A morte também tem o seu
código de honra.
O seu espírito semi-adormecido pensou nas
mães, mulheres, irmãs, que tinham feito e oferecido literalmente
tudo aos senhores almirantes, e a todos os que mandavam nalguma
coisa, para que os seus meninos não fossem fogo fácil na
Tchechénia. Afinal tinham-se trancado num mausoléu nuclear pior que
o Titanic. Que o diabo as leve, que o diabo os leve a todos os
camaradas lá de cima.
- É pá, chamaste? Desculpa estava a
tirar uma sesta.
- Mas quem és tu, julgava que já estivesse
sozinho neste caixão.
- Então não chamaste? Eu sou o diabo,
ao teu dispor.
- O diabo, o mafarrico em pessoa? Olha que não
pareces. Se és o demónio, o que aqui estás a fazer? Tens um ar
muito normal. Isto são alucinações. Não tens por acaso nenhuma
ideia para nos fazer sair daqui?
- O diabo nunca brinca. Vocês
é que me trouxeram, vocês é que me libertaram. Digo-te que dentro
do reactor se estava muito melhor…Mas não me queixo, a água e a
pressão atmosférica não me afectam. Posso até aquecer-te, se
quiseres. Aliás, tenho uma proposta a fazer-te, não queres
trabalhar para mim?
- Já trabalho para ti lá em cima, que
queres mais? As minhas mãos estão a ficar roxas.
- Fazia-te
bem, um bocadinho de calor …humano. Eu aqueço-te, transformo-te em
oficial da ponte de comando, tu és salvo, dizes aquilo que te
ensinaram, fica o nosso pequeno segredo bem guardado, ninguém
resgata o submarino, eu volto descansado para o reactor, tu tornas-te
herói, rapaz.
- Qual segredo bem guardado, não sei sequer o
que se passou, onde estamos nem a que profundidade, não sei o que
aconteceu aos outros…
- Melhor ainda então! O que me dizes,
rapaz, aceitas?
- E as contrapartidas, Camarada Putin, não me
leva a alma ou coisa assim ?
- Não gosto que me tratem por
esse nome. Rapaz, a alma já ma vendeste há muito tempo. Só
precisas contar a história do submarino americano que nos abalroou.
E lembra-te que não temos ogivas nucleares.
- E quando é que
me vêm buscar?
- Assim que tu aceitares a minha proposta,
acredita.
- E o que é que acontece quando voltar para o
reactor?
- Não estás a querer saber demais? Olha que não
estás em posição para regateios… Já não há oportunidades para
nós, diabos, lá em cima, enquanto que aqui…enfim, temos outras
armas…mais sofisticadas. Não revires os olhos agora, preciso de
uma testemunha a toda a prova, acorda.
O corpo do
marinheiro entrou em convulsões enquanto o fio do pensamento se
dissolvia na água gelada.
Quando os mergulhadores noruegueses
abriram a escotilha encontraram o seu corpo já mumificado pela água
do mar. Uma das mãos estava cerrada como se agarrasse qualquer coisa
com muita força. Quando a abriram, descobriram um punhado de cinzas.