terça-feira, 2 de abril de 2019

Auto da Barca do Inferno (publicado em Política Virtual, Setembro 2000)



Mote:
"um povo de escravos e de reis construiu uma civilização sumptuosa e esmagadora, onde, a cada passo, os vivos são convocados ao mundo subterrâneo dos mortos"
Miguel Sousa Tavares
Quatro graus centígrados à sombra, a fugir de cadáveres tornados fantasmas, cianosados e lívidos. O seu próprio reflexo na água que o rodeava. Percebeu que não conseguiria fugir. Estava demasiado frio, demasiado escuro, demasiado peso a latejar na sua cabeça.

Automaticamente martelou na escotilha SOS durante mais de uma hora. Doía-lhe o corpo todo, não só do embate que as explosões tinham provocado em toda a embarcação e que o tinham projectado uns bons metros a uma imensa velocidade contra algumas estruturas metálicas bastante duras, como também da brutal velocidade do afundamento, que lhe causara vómitos incontroláveis, à medida que via os corpos dos seu companheiros serem levados pelas águas.

Doía-lhe o corpo de uma hora de esforço quase em apneia. Tossia e sentia os pulmões saírem-lhe pela boca. Era inútil continuar, ninguém o ouviria. Quando alguém os descobrisse estariam todos mortos…Já não faltaria muito. Era inútil tentar aquecer-se fazendo qualquer tipo de exercício, porque ficaria ofegante e tonto pela falta de oxigénio. Tinha encontrado um local onde se refugiar, ironicamente perto da escotilha que não lhe permitia a salvação. O nível da água tinha parado de subir. Era uma questão de tempo. Um marinheiro nunca abandona o seu posto. A morte também tem o seu código de honra.

O seu espírito semi-adormecido pensou nas mães, mulheres, irmãs, que tinham feito e oferecido literalmente tudo aos senhores almirantes, e a todos os que mandavam nalguma coisa, para que os seus meninos não fossem fogo fácil na Tchechénia. Afinal tinham-se trancado num mausoléu nuclear pior que o Titanic. Que o diabo as leve, que o diabo os leve a todos os camaradas lá de cima.

- É pá, chamaste? Desculpa estava a tirar uma sesta.

- Mas quem és tu, julgava que já estivesse sozinho neste caixão.

- Então não chamaste? Eu sou o diabo, ao teu dispor.

- O diabo, o mafarrico em pessoa? Olha que não pareces. Se és o demónio, o que aqui estás a fazer? Tens um ar muito normal. Isto são alucinações. Não tens por acaso nenhuma ideia para nos fazer sair daqui?

- O diabo nunca brinca. Vocês é que me trouxeram, vocês é que me libertaram. Digo-te que dentro do reactor se estava muito melhor…Mas não me queixo, a água e a pressão atmosférica não me afectam. Posso até aquecer-te, se quiseres. Aliás, tenho uma proposta a fazer-te, não queres trabalhar para mim?

- Já trabalho para ti lá em cima, que queres mais? As minhas mãos estão a ficar roxas.

- Fazia-te bem, um bocadinho de calor …humano. Eu aqueço-te, transformo-te em oficial da ponte de comando, tu és salvo, dizes aquilo que te ensinaram, fica o nosso pequeno segredo bem guardado, ninguém resgata o submarino, eu volto descansado para o reactor, tu tornas-te herói, rapaz.

- Qual segredo bem guardado, não sei sequer o que se passou, onde estamos nem a que profundidade, não sei o que aconteceu aos outros…

- Melhor ainda então! O que me dizes, rapaz, aceitas?

- E as contrapartidas, Camarada Putin, não me leva a alma ou coisa assim ?

- Não gosto que me tratem por esse nome. Rapaz, a alma já ma vendeste há muito tempo. Só precisas contar a história do submarino americano que nos abalroou. E lembra-te que não temos ogivas nucleares.

- E quando é que me vêm buscar?

- Assim que tu aceitares a minha proposta, acredita.

- E o que é que acontece quando voltar para o reactor?

- Não estás a querer saber demais? Olha que não estás em posição para regateios… Já não há oportunidades para nós, diabos, lá em cima, enquanto que aqui…enfim, temos outras armas…mais sofisticadas. Não revires os olhos agora, preciso de uma testemunha a toda a prova, acorda.


O corpo do marinheiro entrou em convulsões enquanto o fio do pensamento se dissolvia na água gelada.

Quando os mergulhadores noruegueses abriram a escotilha encontraram o seu corpo já mumificado pela água do mar. Uma das mãos estava cerrada como se agarrasse qualquer coisa com muita força. Quando a abriram, descobriram um punhado de cinzas.



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