publicado em Política Virtual em Dezembro de 2001
I-A
ameaça
“Quando
o sangue de um inocente é derramado, é derramado o sangue da
Humanidade. Do mesmo modo, quando uma vida é resgatada, é a vida de
toda a Humanidade que é resgatada.”
Imã
Mohammad Gemeaha
Passaram mais de 3 meses…parece que
passaram anos, e no entanto… É a primeira vez que me atrevo a
reunir as peças para falar sobre o assunto. Fiel à sua etiologia,
terrorismo é a ciência de inspirar terror. Não só na televisão,
no mundo dito “civilizado”, lá fora, mas no nosso mundo próprio
interior. Uma vez estilhaçado, custará muito mais do que 100
“Justiças Infinitas/Liberdades Duradouras” a reconstruir. If
ever.
Tanto foi já escrito, dito, mostrado por centenas de
cadeias de televisão, como se mais depressa se apagasse o fogo por
tanto falar dele. O que melhor retrata o non sense pós-traumático
de uma geração que nunca esteve debaixo de uma guerra real foi
precisamente a comparação com os filmes de Hollywood. O Apocalipse
em Nova Iorque, revisitado, nunca tinha sido (publicamente) visionado
de maneira tão incisiva e cruel. Sinais dos tempos, a arte não
imita a vida, a vida imita as playstations.
É muito mais
fácil carregar no botão e ver à distância arder 100 Hiroshimas.
Mas o factor humano muda tudo…Pensávamos nós que nos conhecíamos
melhor no terceiro milénio (dC). Pelo menos nestes últimos dois
séculos o lema olímpico “mais depressa, mais alto, mais forte”
pode com muita propriedade aplicar-se à nossa capacidade de
aniquilação.
Hoje, sabendo o que sei, tendo visto o que vi,
posso dizer que tenho medo, muito medo. Há 10 anos preparava-me para
um mundo sem fronteiras, sem muros de Berlim, as ameaças votadas ao
esquecimento. Hoje, tenho medo do ontem e do amanhã, porque
realmente nem sei se um ou outro aconteceram ou virão a
acontecer.
Por isso odeio religiosamente (e religiosamente tem
um sentido diferente de fanático) quem quer que seja que tenha
destruído esta ordem (exterior e interior). Porque a mim me roubaram
o meu deus. O D grande ficou entalado nos escombros do WTC, cremado,
partido, amortalhado, esquecido. Os que vão morrer Te saúdam.
A
religião não me interessa, monstros há-os em todas, que delas se
servem para os seus propósitos. Daí que, Ossama ou Adolf seja
puramente indiferente, a Solução Final é a mesma, a impunidade
perante si próprios coberta pelo mesmo manto hipócrita e ridículo,
a sordidez e planeamento do embuste iguais.
Não a
despropósito, Apocalipse quer dizer Revelação.
II-
A cidade
“A
cidade, pela primeira vez na sua longa história, é destrutível.
Uma simples formação de aviões do tamanho de um bando de gansos
pode acabar rapidamente com esta ilha de fantasia, queimar as
torres, transformar as passagens subterrâneas em câmaras letais,
cremar milhões. A sugestão de mortalidade passou a fazer parte de
Nova Iorque: no som dos jactos no céu, nos títulos a negro da
última edição de um jornal."
“Na
mente de qualquer sonhador perverso (…) Nova Iorque deve manter um
charme magnético e irresistível”
- E.B.White, jornalista e escritor, conhecido dos americanos sobretudo pelas suas brilhantes histórias infantis, escreveu em 1948-49 “Here is New York”, pequeno livro sobre a sua cidade, não um guia turístico, mas uma visão e pressentimentos íntimos, dos quais escolhi dois acima transcritos.
NY sempre teve consciência da sua magnanimidade, dos ghettos de negros e da esquina com a 5ª Avenida. NY é o mundo americano, palpitante, vivo, desembaraçado, só e plural. Manhattan é o nome de um filme de Woody Allen que nos faz lembrar Gershwin, a ponte de Brooklyn e as torres, à noite, um skylight a preto e branco de uma cidade hiper povoada que começou a crescer para cima.
A 11 de Setembro dois aviões comerciais embateram contra as duas torres gémeas do World Trade Center. Estive lá, no Ground Zero, 109 andares acima, há 1 ano; vi as pessoas nos seus escritórios agriolhados por pequenas frestas metálicas em forma de janela; vi o céu lá em cima, Central Park lá ao fundo, a estátua da liberdade tão pequena lá em baixo.
Foi megalomania construir as torres? Não creio que Deus ou Alá se pudessem sentir tão desafiados. Afinal demoraram mais de 20 anos a desenvolver a maneira mais eficaz, televisiva e que matasse o maior número de almas possível. E resultou.
Para alguém da minha geração, pondo de parte o aspecto das perdas humanas, no espaço de um ano, assisti ao colapso de 2 instituições de alta tecnologia que nasceram comigo, ou o seu reconhecimento/sucesso foi meu contemporâneo: o Concorde e as Torres do WTC. Inabaláveis, diziam. Shaken, not stirred. Mares de chamas. Na era dos riscos calculados, o terceiro milénio brindou-nos com acidentes considerados inverosímeis mas que diminuíram a nossa fé no futuro radioso que sonhávamos viver. Cada dia que passa, a televisão, esse incrível aliado do infortúnio trata de nos desinformar um pouco mais e deprimir até à dependência absoluta das suas imagens irreais.
Os nova-iorquinos fizeram o seu luto colectivo, acenderam as velas, cantaram os seus mortos, desfraldaram as bandeiras, enquanto o país procurava o seu presidente, temporariamente perdido no Air Force One; depois o presidente viu-se forçado a procurar um culpado (que não os organismos de segurança do estado, NSA, CIA, FBI) e um nome mais adequado que Justiça Infinita (pelos vistos, a inspiração no Corão soava demais a Al-Qaeda). Depois, foi o que foi e um dia será, o gato e o rato com algumas perdas colaterais pelo meio.
O mundo recompõe-se, os analistas económicos respiram e é Natal. Mas este ano não há Menino Jesus e o Pai Natal encontra-se refugiado num bunker algures na Gronelândia.III- As vítimas“Não sei se o mundo vai ser pior ou melhor. Mas vai ser diferente.”E. Athayde
Porquê tanta ignorância acumulada em forma de ódio cego e demolidor. Porquê matar tanta gente inocente? Não há nada que se possa dizer que o justifique. Quem tentar é masoquista ou perdeu a razão. O que não é difícil. Nestes dias, razão e justiça são difíceis de encontrar.“Not only do you need the courage of your convictions, sometimes you need the courage of your doubts.”Adlai Stevenson
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