terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Uma história simples



Não é história, nem cinematográfica, embora me tenha relembrado do actor com os olhos mais azuis do universo que para mim passou a ser a encarnação viva do Pai Natal (sem ser da Coca-cola).
A vida não é simples, e chamar para aqui mais um filme é apenas por consolo da época natalícia. A futurologia é uma ciência incerta, mas às vezes ficamos blindados para o choque maior.

Desde que trabalho em diálise, melhor, desde quando comecei a aprender, conheci um senhor muito simpático, na altura nos seus 70s e tais, com uma cultura de vida excepcional. Por amor foi de Lisboa para o Canadá, para obter mais depressa um visto de entrada nos EUA. Por amor, porque ía casar com uma americana que lhe tinha roubado o coração em Lisboa.
Oito anos depois já eu e ele tinhamos trocado chalaças sobre a América de Obama e Trump, e praticamente sei por onde andou nos states, do Massachussets a Washington DC. Não fez o percurso típico do emigra tuga. Tinha o liceu completo português, na América, como em todo o lado agora, faltava o 12ºano, que fez e seguiu curso de contabilidade. Acabou no departamento contabilistico do departamento federal responsável pela metereologia.
Teve uma filha (que vive na América e que vê Portugal da perspectiva do turista), enviuvou e casou novamente, desta vez com uma portuguesa emigrada com família na costa oeste.

Já depois de reformado e de ter decidido voltar a Portugal, alguns problemas crónicos levaram à diálise. Como é obvio, nada que fosse coberto por seguros de saúde nos states. Não voltaria mais á América, embora até pudesse votar para a presidência na embaixada. 
A reforma vinha dos states após revisões cambiais e com uns meses de atraso. Quando o euro valorizou muito em relação ao dolar o atraso piorou. No entanto era uma pessoa que não pensava em dinheiro quando era necessário algo importante. Guiava, ia passear com a esposa, comer fora. Com o tempo tudo se foi reduzindo, por doenças de ambos.

O Joe de Washington ficou maravilhado quando lhe falei de algumas coisas da capital e de Nova Iorque. Na verdade, só estive alguns dias em Nova Iorque. O que sei de Washington DC é livresco e aprendido na 1ª/5ª série de "24", e mais tarde com House of Cards. Emprestou-me um livro com a história de todos os presidentes que comprou na Casa Branca e deu-me o livro do Dan Brown que se pássa em DC. Falámos de furacões, do congresso, do burro e do elefante.
Só nos viamos quando eu fazia sábados, logo ficava até ao ultimo turno, ou então na passagem de turnos às 3as, mas tinhamos sempre assunto de conversa. Aliás, acho que não há ninguém que não gostasse dele. Um gentleman à antiga. E gostava do Great American Songbook, pelo que já lhe tinha dado uns cds da época.

Nos últimos anos, foi internado duas vezes na cardiologia, a ultima para colocação de pacemaker. Ele era bastante ansioso em relação ao que sentia, como as arritmias. Não chamo hipocondríaco, mas superansioso. Nessas alturas uma mãozinha ajudava mais que medicamentos, assim como assegurar que estava tudo bem. Cada internamento levou-lhe muito músculo e peso, por estar acamado. Passou a ser mais dificil andar. Ainda arranjou tempo para parti um braço, se bem me lembro.

Há 3 ou 4 semanas, a filha veio a Lisboa, foram passear e acabou com a diáfise do fémur rachada na longitudinal. Não sou ortopedista, mas não me parece lícito deixar um doente de 80 e varios anos, em diálise (mais osteoporótico) acamado 6 semanas, imobilizado com gesso até à raiz da perna. Certamente havia uma maneira com parafusos e um imobilizador externo que permitisse uma recuperação mais rápida. De qualquer maneira, isso não foi levado em conta.

Também não foi levado em conta que deveria ir para uma unidade de cuidados continuados durante a recuperação, pois iria precisar de cuidados de enfermagem diários e a esposa mal consegue tomar conta dela. Foi para casa. Também não foi tomado em conta que embora imobilizado, tinha que fazer diálise 3 vezes por semana. 
Portanto passou a ir de maca com um plano duro, queixando-se de dores cada vez que era rodado, para a cadeira da diálise, ou de volta para o plano duro (mas a realidade seria ainda pior), e como as escadas do prédio onde morava eram muito estreitas, tinha de vir no plano duro em pé,de elevador.

Isto não parece de bradar aos céus? A mim parece-me, e ninguém fez nada. Quando soube da situação, pensei "isto não via correr bem". Mas não faço residência no turno salvo excepções, não sou nefrologista, ortopedista, etc. Bom senso só não chega. Porque ninguém teve nem um bocadinho.

O Joe tinha duas pessoas a ir a casa, para fazer comer e para lhe dar banho. E ainda um enfermeiro. Passado um tempo falaram de uma ferida. Não percebi se era entre a pele e o gesso. Com a brevidade do costume (uns bons dias depois) pediram-se análises, porque alguém se tinha esquecido. Estava infectado. Foi prescrito um antibiótico manhoso, oral. A directora da clínica teve conhecimento disso, mas não mudou a prescrição.

O meu sábado chegou. O Joe estava desidratado e não conseguia falar bem. Pensou-se logo em AVC, mas neurologicamente estava tudo bem: tinha era a língua extremamente seca. Perguntei sobre tudo o que tinha em casa e estava a fazer. Não me pareceu o suficiente, embora ele tenha dito que já tinham escrito cartas para o Centro de Saúde para mudar a situação. Esteve sempre hipotenso, e por isso um bocado sonolento. À posteriori, penso se não devia tê-lo mandado para o hospital, mas na altura pensei que o mandariam para casa ainda pior, uma vez que não havia grandes queixas (só um estado geral miserável). Falei com a esposa, disse os dias em que lá estaria durante a semana se fosse necessária alguma coisa.
Na 3ºf seguinte de manhã ela telefonou: o Joe estava com tosse, febre e confuso. Disse-lhe para chamar o 112 e ir para o hospital.
Acontece que a ambulância do INEM não tinha plano duro... Não faço ideia como transportarão politraumatizados...Nem foram os sapadores de Lisboa a levá-lo, mas os voluntário do Beato. Está alguma coisa mal? Não, que ideia, é só uma emergência.

Do que sobe depois,o Joe tinha uma enorme escara sagrada, em que nem os cirurgiões se atreveram a tocar. Não esteve estável e penso que terá estado confuso ou pior, até domingo dia 3.
Várias pessoas sentem hoje a sua falta. Há maneiras de viver, mas também há maneiras de morrer. Se tivessem abatido um cavalo por ter uma perna partida tinha sido mais humano.
Não pensaram na pessoa, nos cuidados terciários que andam sempre na boca dos ministros mas que na realidade são uma lástima e em quantidade minúscula. As unidades de cuidados continuados têm de estar perto das pessoas e serem acessíveis. Mais vale serem muitas com poucas camas do que estarem permanentemente em situação de rotura,como antes estavam os hospitais com os casos sociais. O tempo de internamento diminui, porque essencialmente nos hospitais fazem-se técnicas e põem-se as pessoas a andar (às vezes com umas bactérias a mais).

Das pessoas que não mereciam 3/4 semanas de sofrimento, uma delas seria o Joe. Pena que isso lhe tenha sido negado. Ainda não me conformo com isso. Este Natal não vai ser o mesmo.