sábado, 24 de novembro de 2018

First Man (publicado a 21/11 em Repórter Sombra)



Depois de ter visto O Primeiro Homem na Lua, e de ter gostado bastante, senti muita dificuldade em escrever sobre o filme, apesar de ter lido vários artigos sobre o livro (biografia autorizada) com o mesmo nome, escrito por James R. Hansen em 2005 (adaptado por Josh Singer, argumentista de Spotlight e The Post), e ter visto um excepcional documentário produzido pela BBC em 2012, Neil Armstrong: First Man on the Moon.
Li também várias críticas portuguesas, inglesas e americanas, e fiquei a saber alguma coisa sobre o making of, quase tudo, diga-se, em abono do filme.
Sobre o homem, primeiro astronauta na Lua (a ordem e a escolha não foram arbitrárias, obviamente), que conhecia por não gostar de falhar e experimentar sempre até conseguir, fiquei a saber que nasceu em Cincinnati, Ohio (cidade Natal de um certo produtor executivo chamado Steven Spielberg), no Midwest. Teve brevet de aviador antes de ter carta de condução. A família mudou-se muitas vezes e acabou por viver perto da cidade natal dos irmãos Wright, que eram os seu ídolos. Alistou-se na Marinha para conseguir uma bolsa para a faculdade. Acabou por ser piloto na guerra da Coreia, e quando foi desmobilizado, completou o curso de Engenharia Aeroespacial. Foi piloto de testes e entrou no programa espacial no segundo grupo, “The New Nine” (depois dos “Mercury Seven”).
Pausa para narrativa do filme.
Depois da missão Apolo 11, saiu da NASA e durante largos anos foi professor na faculdade onde se formou e vivia numa quinta no campo. Foi sempre avesso a exposição mediática, um homem reservado e que escolhia bem as palavras que usava.  Algumas pessoas catalogam-no como recluso.
Sobre o filme, que esperar de Damien Chazelle que nos brindou com Whiplash/Nos Limites (2014) e La La Land /A melodia do Amor (2016, com direito a Óscar para realizador)? Gostei dos dois filmes, de maneira muito diferente. São sem dúvida filmes sobre obsessões e sacrifícios, tal como First Man.
First Man é sobre superação e sublimação, ou como face a um imenso conjunto de adversidades, se segue em frente. E é um filme não sobre os anos 60 mas sobre 2018. Essa é a parte que falha.
Neil Armstrong (Ryan Gosling) é um homem reservado, mergulhado no trabalho para esquecer (ou mastigar) a dor da perda da filha de 2 anos com um tumor cerebral. Tem uma família, a esposa Janet (Clare Foy) e dois filhos, alguns amigos (os astronautas Elliot See e Ed White), que morrem em acidentes violentos e partilha cervejas e barbecues com os colegas.
Gosling capta bem a essência da introspecção. Não se contorce com dúvidas, embora não queira partilhar algumas dores com ninguém. A sua cara não é inexpressiva, embora não seja sorridente. Sente-se alguma pressão, tensão e muito controlo.
 As personagens “caladas” não são fáceis - facilmente uma característica de personalidade pode ficar reduzida ao seu cliché, coisa que li vezes sem fim. O carácter estoico, a frieza, a contenção das emoções não são “uma ideia tradicional de masculinidade americana” (leia-se nas entrelinhas, branca). São pura e simplesmente traços da natureza de um homem simples do Midwest que conseguiu muito mais do que aquilo que sonhou, e que talvez só peça um bocadinho de paz.
É interessante como as cenas passadas na Terra, perto de casa, estão cheias de barulho da natureza, da chuva ao canto dos pássaros. Por contraste, os big booms estão cheios de barulho de máquinas (os foguetões, os foguetes, a estrutura a abanar-como-que-a-desfazer-se).
E é durante os big booms que nos fixamos intensamente na cara, nos olhos de Armstrong, no espaço exíguo de um cockpit ou de cápsulas e o vemos também a ele ser agitado, forçado no assento com ou sem gravidade, em todas as direcções, como se estivéssemos ao lado dele.
Estamos com Armstrong no jacto que salta a atmosfera, na cena que abre o filme (piscar de olho a Os Eleitos), estamos com Armstrong, na Gemini 8, enquanto dança a valsa (piscar de olho a 2001 Odisseia no Espaço) e enquanto gira em velocidade sobre humana; estamos com Armstrong quando o Saturn V o empurra para a Lua e ainda estamos com ele na alunagem. Estamos com ele do outro lado do visor dourado que reflecte a superfície da Lua. Estamos com ele quando se despede da filha.
E agora 2018, para o melhor e o pior. Sendo filho da sua época é um filme intensamente nostálgico, não só em relação à personagem, mas sim à era. Nós já fomos ingénuos, simples, já conseguimos tanto só com uma pinguinha de hardware e software. Nós já tivemos vontade de ir à Lua, nós já tivemos vontade de nos vestir de cowboy ou de andar de baloiço. Agora é tudo complicado.
Daí resultam coisas inesperadas, como a música. Armstrong gostava de Lunar Rhapsody, onde entrava um instrumento que é melhor googlar, o teremim. Justin Hurwitz, o colaborador mais regular de Chazelle, também o utilizou, criando músicas que parecem de outro mundo (ou seja de filmes de outros mundos dos anos 50).
Outro tópico 2018 – a dúvida. Terá valido a pena ir à Lua? Gastar dinheiro que poderia salvar gente da pobreza, doença, fome e pestilência? Como dúvida, é irritante. Cada vez que investirmos num ramo do conhecimento humano, estaremos a desinvestir noutra coisa. Ainda outro tópico 2018 – um filme sobre um branco, realizado e produzido por brancos. Insere-se Gil Scott-Heron perto do Cabo Canaveral, cantando que só os brancos vão à Lua...
As insistências 2018, por mais verdade que contenham em si, são vazias. A história foi feita e nunca é perfeita. Não se ganha nada senão a indignação de todas as partes.
O que me leva ao pináculo 2018: a ausência da bandeira americana na Lua, que fez saltar e ufar senadores republicanos e o próprio Aldrin. Bem, a bandeira está lá, não faz parte da acção central, e é de uma completa mesquinhez arranjar teorias da conspiração com isso. Contudo o mal está feito. Muito 2018.

Resumindo: é um filme tremendamente imersivo, que nos põe facilmente na pele de Armstrong em todas os cenários fora da Terra. Sentimos a sua dor e o seu empenho e quem, como ele, tiver uma costela introspectiva, percebe as  suas reacções. Não deixa de ser estranho contudo, que até num dos principais posters, seja a Lua a fazer as vezes de vidro do capacete de Armstrong, como se ele estivesse permanentemente separado de todos nós, hermeticamente selado pelos selenitas.

Pipocas extra:


Então queres ser um escritor? (Charles Bukowski)



se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve.
Tradução: Manuel A. Domingos

domingo, 11 de novembro de 2018

Se nós não deixarmos, um luto nunca começa


Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message 'He is Dead'.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.

W H Auden /Funeral Blues

Não parem os relógios nem desliguem os telefones. Não façam silêncio.Não há funeral, não se canta o blues. As carpideiras não são bem vindas. 
Parece-me demais escrever no céu alguma coisa. Pensei uma vez mesmo a sério que pudessem existir todos os meus pontos cardeais numa pessoa. A minha semana de trabalho e o meu descanso de domingo. A minha tarde, minha meia noite, minha voz, minha canção. Mas quando se erra insiste-se no erro. Não era amor e não ia durar para sempre.
As estrelas são precisas sempre, não empacotem a Lua nem destruam o Sol, deixem correr o oceano e a floresta e a vida; alguma coisa boa sairá de deixar partir quem nunca quis ficar. 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

A memória é um lugar estranho

Publicada em Repórter Sombra a 5/11/2018




A Memória é um lugar estranho

Eu lembro-me”, “eu faço” e “eu sou” não são afirmações tão independentes como se possa pensar numa primeira leitura. Se o nosso cérebro não conseguir integrar as nossas lembranças com a nossa própria pessoa, com os estímulos sensoriais que constantemente recebemos do exterior, com a nossa capacidade motora e com a nossa vida de relação, muitas das suas funções superiores ficam comprometidas.
Sendo a memória um sistema de processamento extremamente eficaz e sensível que codifica a nova informação, a armazena e a recupera (quando necessário), podemos dizer que se torna indispensável para a criação do nosso “eu” (gerando, por exemplo, uma narrativa interna temporal e cronológica autobiográfica) e para fornecer orientação no espaço, tempo, em relação a nós próprios e a terceiros.
Em que é que isto se traduz, na prática? Desde que nascemos, estamos sempre a aprender, com a novidade e a repetição. Estamos expostos a uma variedade quase ilimitada de estímulos externos, e à medida que as conexões neuronais se vão desenvolvendo e tornando mais complexas durante a infância, vamos adquirindo a noção de constância do eu, da separação entre eu e os outros, de inúmeras funções motoras, sendo porventura a mais complexa a linguagem.
A memória codifica tudo. O que significa codificar? Transformar estímulos físicos e químicos externos (ao cérebro) em novos padrões de conexões neuronais, quer isoladamente (codificação individual de estímulos auditivos, visuais, tácteis, ou integrada: informação espacial, geográfica, verbal, cronológica).
O processamento e o armazenamento implicam a existência de “filtros” que permitam a separação entre estímulos supérfluos e necessários, a informação que necessitamos para o dia a dia e a informação a armazenar de forma permanente.
No primeiro caso entram em jogo o foco, a atenção e a repetição, para construir memórias de curto prazo (memória processual ou de trabalho, com armazenamento limitado e duração de minutos) codificando sobretudo informações e actividades automáticas do quotidiano.
No segundo caso, a consolidação e reconsolidação da informação está ligada ao hipocampo, amígdala, corpos estriados e mamilares, estruturas cerebrais em estreita ligação com o sistema límbico e hipotálamo. Sendo um sistema responsável por emoções, comportamento e aprendizagem com ligação a estruturas vitais e reguladoras do organismo (sistema nervoso autónomo e sistema endócrino), vai influenciar em muito a formação e recuperação da memória de longo prazo.
Resumindo, a memória de longo prazo (cuja duração é potencialmente ilimitada) está associada a emoções (“positivas” ou “negativas”) e mesmo estados orgânicos. A recordação ou evocação de memórias pode ser inibida ou estimulada consciente ou inconscientemente.

Quase todos nós temos recordações expressivas de certos momentos da nossa infância (memórias que recuperamos muitas vezes ao longo da vida). No entanto, podemos ser vítimas de percepções falsas (visão, audição...) que foram guardadas como informação verdadeira, ou de informação com um peso emocional tão grande que pode ter sido subvertida, quer na consolidação, quer na recuperação.
Quer isto dizer que as nossas recordações normalmente não são completamente exactas; as memórias foram armazenadas com o filtro do nosso “eu”, na altura do acontecimento. Esse filtro é também condicionado pela idade, stress ou presença de condições físicas ou psíquicas.
Para terminar, o cérebro e a memória têm também um “horror ao vazio”. Em circunstâncias em que as memórias deixam de poder ser evocadas (não há evidência de que sejam destruídas), o cérebro produz novos dados sem qualquer coerência com a informação em falta (confabulação).
A memória, uma de muitas funções cognitivas superiores, é um lugar estranho, porque acaba por se estender do cérebro a todo o organismo, estabelecendo um sistema de coerência do próprio que quando é perdido se torna o pior dos labirintos: uma realidade alternativa da qual o sujeito deixou de fazer parte.


Pequena nota cinematográfica: um exemplo bem construído sobre processos mentais e a conservação de memórias - O Despertar da Mente (Eternal Sunshine of the Spotless Mind), 2004