terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Des / Ocupar (publicado em Repórter Sombra a 5/12)



sobre capitalismo, desigualdade social e algumas utopias



Capitalismo é uma palavra feia, mesmo que faça o mundo rodar. É um grande ismo cheio de si, que parece atrair cifrões e outros ismos papões de sentido contrário, como Socialismo e Comunismo.
No fundo, é a economia de mercado que governa o mundo, desde que os meios e a necessidade de produção em grande escala se tornaram rotina, com o advento da Revolução Industrial, embora já tivesse sido ensaiado , em menor escala, a partir do Renascimento, nas trocas comerciais entre Europa e Ásia, que prosperaram no período de expansão ultramarina.
Não sendo eu, tal como Fernando Pessoa, especialista em Finanças, mas apenas uma parte interessada, relembro a definição clássica de Capitalismo: um sistema económico e social baseado na propriedade privada dos meios de produção (e distribuição), cujo objectivo é atingir lucro e acumulação de riqueza, através do trabalho da classe trabalhadora ou assalariada.
Os proprietários dos meios de produção tomam decisões em benefício próprio e fazem investimentos nos mercados financeiros, e o preço e distribuição dos bens são determinados pela concorrência e pela lei da oferta e procura.
Os trabalhadores assalariados “vendem” horas do seu trabalho de modo a obterem também uma pequena fatia de capital que vai teoricamente retro-alimentar o mercado de consumo.
Não é difícil percebermos vários problemas associados a este tipo de organização do mercado: a ligação a um lucro (e acumulação) exponenciais, a limitação do salário ou do emprego para obter esse mesmo lucro, as actividades paralelas nas praças financeiras criando sistemas de concorrência desleais, cartéis ou monopólios, o esgotamento das matérias primas e energia, a desigualdade económica e social cada vez mais acentuada entre quem trabalha e quem manda trabalhar, e entre países mais  e menos “desenvolvidos”.
As teorias capitalistas de mercados livres não regulados surgiram após a Revolução Francesa, a  independência dos Estados Unidos da América, e concomitantemente à Revolução Industrial. Os  economistas e filósofos como Adam Smith e Jean-Jacques Rousseau consideravam estes sistemas mais livres e democráticos. Uma utopia.
Assim como utópico foi sempre o conceito de igualdade. Herdámos sistemas sociais presentes em muitos grupos de primatas, onde se observa uma hierarquia de dominância, que determina quem tem direito a comer primeiro ou a acasalar e produzir descendência.
Nos tempos dos caçadores-recolectores não poderia haver muita discriminação, mas assim que passámos a produzir, modificar e vender, a produzir excedentes e a aprender a escrever, ao mesmo tempo que a população crescia (ainda a ritmo lento), a clássica tríade social começou a tomar forma (clero, nobreza e povo).
Com o mercantilismo de Quinhentos e a Indústria de Oitocentos, o clero e a nobreza foram-se tornando cada vez mais irrelevantes e a burguesia, desde sempre ligada ao comércio começou a longa escalada até ao 1% mais alto.
Tenho para mim que a desigualdade existiria em qualquer sistema económico e político. As experiências com a União Soviética e a China, mostraram que a almejada distribuição equalitária dos lucros pelos proletários nunca segue o melhor caminho, e o controlo total dos meios de produção pelo estado (agindo em nome do proletariado) também é de uma grande ingenuidade totalitária.
O sistema capitalista também é acusado de agitar a democracia, não só pelas relações de realpolitik com países e organizações suspeitas, por mais um punhado de dólares, como pelos fortes lobbies que tentam condicionar as forças políticas (como certos donos disto tudo).
Não é também um sistema isento de fragilidades e de falhas, com várias crises no século XIX (que precisamente levaram Karl Marx a teorizar que o caminho do capitalismo seria sempre o desastre), a grande depressão dos anos 30, a crise do petróleo nos anos 70, ou por exemplo um ainda recente crash da bolsa, decorrente da crise do sub-prime em 2007-2008.
A economia mundial da aldeia global ressente-se, os governos tentam salvar as grandes instituições financeiras, o desemprego aumenta com sucessivas falências e os contribuintes (principal fatia da liquidez para o mercado e para os impostos) são cilindrados no seu poder de compra (e no fundo, qualidade de vida).
A igualdade como direito e não utopia só cresceu como verdadeira força social motivadora com a conquista do direito de voto pelas mulheres e a luta pelos direitos civis (igualdade entre raças).
Os governos (e os grandes grupos acumuladores de capital) tiveram de começar a ter em conta que não basta pagar ao “proletariado” (agora divido por tantas actividades), mas também proporcionar níveis de saneamento básico e habitação, educação, saúde e justiça.
Mesmo assim, apesar de assumido como a “norma”, o Capitalismo, para ser tendencialmente mais equalitário e menos atreito a crises periódicas, necessita de regulação, pelos seus pares, e pelos governos, nacionais, e talvez por mais entidades externas independentes.
 Não podem ser ultrapassados limites em que a ganância joga com o capital que possui e com  que ainda está por imaginar. Nem que sejam permitidos lobbies que controlem todas as forças políticas de tal modo que a democracia seja formatada segundo interesses que não os da maioria.
Como fazer isto? Escrevo este texto em plena black friday. E como disse, não sou perita em economia. O poder dos consumidores não se resume a ocupar Wall Street. Temos que começar a comprometermo-nos com aquilo que compramos. Para já, se conseguíssemos acabar com estas épocas de consumismo forçado, seria uma marca de distinção.
Pensar fora da caixa, fazer compras  conscientes a nível local e menos nas grandes superfícies, em estabelecimentos com ligação ao comércio justo (com ligações à sustentabilidade, direitos humanos, ecologia e pequenas comunidades). Reciclar. Pensar nos custos ecológicos. Trazer a ética ao nosso consumo, para que ela passe a ser necessária até para o 1% de topo.



Para pensar: Comércio Justo



segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Sade - Is It A Crime (Official Video)



 This may come, this may come as some surprise
But I miss you
I could see through all of your lies
And still I miss you
He takes her love, but it doesn't feel like mine
He tastes her kiss, her kisses are not wine, they're not mine
He takes, but surely she can't give what I'm feeling now
She takes, but surely she doesn't know how
Is it a crime
Is it a crime
That I still want you
And I want you to want me too
My love is wider, wider than Victoria Lake
My love is taller, taller than the Empire State
It dives and it jumps and it ripples like the deepest ocean
I can't give you more than that, surely you want me back
Is it a crime
Is it a crime
I still want you
And I want you to want me too
My love is wider than Victoria Lake
Taller than the Empire State
It dives and it jumps
I can't give you more than that, surely you want me back
Is it a crime
Is it a crime
That I still want you
And I want you to want me too
It dives and it jumps and it ripples like the deepest ocean
I can't give you more than that, surely you want it back
Tell me, is it a crime
Compositores: Andrew Hale / Helen Adu / Helen Folasade Adu / Stuart Matthewman

sábado, 24 de novembro de 2018

First Man (publicado a 21/11 em Repórter Sombra)



Depois de ter visto O Primeiro Homem na Lua, e de ter gostado bastante, senti muita dificuldade em escrever sobre o filme, apesar de ter lido vários artigos sobre o livro (biografia autorizada) com o mesmo nome, escrito por James R. Hansen em 2005 (adaptado por Josh Singer, argumentista de Spotlight e The Post), e ter visto um excepcional documentário produzido pela BBC em 2012, Neil Armstrong: First Man on the Moon.
Li também várias críticas portuguesas, inglesas e americanas, e fiquei a saber alguma coisa sobre o making of, quase tudo, diga-se, em abono do filme.
Sobre o homem, primeiro astronauta na Lua (a ordem e a escolha não foram arbitrárias, obviamente), que conhecia por não gostar de falhar e experimentar sempre até conseguir, fiquei a saber que nasceu em Cincinnati, Ohio (cidade Natal de um certo produtor executivo chamado Steven Spielberg), no Midwest. Teve brevet de aviador antes de ter carta de condução. A família mudou-se muitas vezes e acabou por viver perto da cidade natal dos irmãos Wright, que eram os seu ídolos. Alistou-se na Marinha para conseguir uma bolsa para a faculdade. Acabou por ser piloto na guerra da Coreia, e quando foi desmobilizado, completou o curso de Engenharia Aeroespacial. Foi piloto de testes e entrou no programa espacial no segundo grupo, “The New Nine” (depois dos “Mercury Seven”).
Pausa para narrativa do filme.
Depois da missão Apolo 11, saiu da NASA e durante largos anos foi professor na faculdade onde se formou e vivia numa quinta no campo. Foi sempre avesso a exposição mediática, um homem reservado e que escolhia bem as palavras que usava.  Algumas pessoas catalogam-no como recluso.
Sobre o filme, que esperar de Damien Chazelle que nos brindou com Whiplash/Nos Limites (2014) e La La Land /A melodia do Amor (2016, com direito a Óscar para realizador)? Gostei dos dois filmes, de maneira muito diferente. São sem dúvida filmes sobre obsessões e sacrifícios, tal como First Man.
First Man é sobre superação e sublimação, ou como face a um imenso conjunto de adversidades, se segue em frente. E é um filme não sobre os anos 60 mas sobre 2018. Essa é a parte que falha.
Neil Armstrong (Ryan Gosling) é um homem reservado, mergulhado no trabalho para esquecer (ou mastigar) a dor da perda da filha de 2 anos com um tumor cerebral. Tem uma família, a esposa Janet (Clare Foy) e dois filhos, alguns amigos (os astronautas Elliot See e Ed White), que morrem em acidentes violentos e partilha cervejas e barbecues com os colegas.
Gosling capta bem a essência da introspecção. Não se contorce com dúvidas, embora não queira partilhar algumas dores com ninguém. A sua cara não é inexpressiva, embora não seja sorridente. Sente-se alguma pressão, tensão e muito controlo.
 As personagens “caladas” não são fáceis - facilmente uma característica de personalidade pode ficar reduzida ao seu cliché, coisa que li vezes sem fim. O carácter estoico, a frieza, a contenção das emoções não são “uma ideia tradicional de masculinidade americana” (leia-se nas entrelinhas, branca). São pura e simplesmente traços da natureza de um homem simples do Midwest que conseguiu muito mais do que aquilo que sonhou, e que talvez só peça um bocadinho de paz.
É interessante como as cenas passadas na Terra, perto de casa, estão cheias de barulho da natureza, da chuva ao canto dos pássaros. Por contraste, os big booms estão cheios de barulho de máquinas (os foguetões, os foguetes, a estrutura a abanar-como-que-a-desfazer-se).
E é durante os big booms que nos fixamos intensamente na cara, nos olhos de Armstrong, no espaço exíguo de um cockpit ou de cápsulas e o vemos também a ele ser agitado, forçado no assento com ou sem gravidade, em todas as direcções, como se estivéssemos ao lado dele.
Estamos com Armstrong no jacto que salta a atmosfera, na cena que abre o filme (piscar de olho a Os Eleitos), estamos com Armstrong, na Gemini 8, enquanto dança a valsa (piscar de olho a 2001 Odisseia no Espaço) e enquanto gira em velocidade sobre humana; estamos com Armstrong quando o Saturn V o empurra para a Lua e ainda estamos com ele na alunagem. Estamos com ele do outro lado do visor dourado que reflecte a superfície da Lua. Estamos com ele quando se despede da filha.
E agora 2018, para o melhor e o pior. Sendo filho da sua época é um filme intensamente nostálgico, não só em relação à personagem, mas sim à era. Nós já fomos ingénuos, simples, já conseguimos tanto só com uma pinguinha de hardware e software. Nós já tivemos vontade de ir à Lua, nós já tivemos vontade de nos vestir de cowboy ou de andar de baloiço. Agora é tudo complicado.
Daí resultam coisas inesperadas, como a música. Armstrong gostava de Lunar Rhapsody, onde entrava um instrumento que é melhor googlar, o teremim. Justin Hurwitz, o colaborador mais regular de Chazelle, também o utilizou, criando músicas que parecem de outro mundo (ou seja de filmes de outros mundos dos anos 50).
Outro tópico 2018 – a dúvida. Terá valido a pena ir à Lua? Gastar dinheiro que poderia salvar gente da pobreza, doença, fome e pestilência? Como dúvida, é irritante. Cada vez que investirmos num ramo do conhecimento humano, estaremos a desinvestir noutra coisa. Ainda outro tópico 2018 – um filme sobre um branco, realizado e produzido por brancos. Insere-se Gil Scott-Heron perto do Cabo Canaveral, cantando que só os brancos vão à Lua...
As insistências 2018, por mais verdade que contenham em si, são vazias. A história foi feita e nunca é perfeita. Não se ganha nada senão a indignação de todas as partes.
O que me leva ao pináculo 2018: a ausência da bandeira americana na Lua, que fez saltar e ufar senadores republicanos e o próprio Aldrin. Bem, a bandeira está lá, não faz parte da acção central, e é de uma completa mesquinhez arranjar teorias da conspiração com isso. Contudo o mal está feito. Muito 2018.

Resumindo: é um filme tremendamente imersivo, que nos põe facilmente na pele de Armstrong em todas os cenários fora da Terra. Sentimos a sua dor e o seu empenho e quem, como ele, tiver uma costela introspectiva, percebe as  suas reacções. Não deixa de ser estranho contudo, que até num dos principais posters, seja a Lua a fazer as vezes de vidro do capacete de Armstrong, como se ele estivesse permanentemente separado de todos nós, hermeticamente selado pelos selenitas.

Pipocas extra:


Então queres ser um escritor? (Charles Bukowski)



se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve.
Tradução: Manuel A. Domingos

domingo, 11 de novembro de 2018

Se nós não deixarmos, um luto nunca começa


Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message 'He is Dead'.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the wood;
For nothing now can ever come to any good.

W H Auden /Funeral Blues

Não parem os relógios nem desliguem os telefones. Não façam silêncio.Não há funeral, não se canta o blues. As carpideiras não são bem vindas. 
Parece-me demais escrever no céu alguma coisa. Pensei uma vez mesmo a sério que pudessem existir todos os meus pontos cardeais numa pessoa. A minha semana de trabalho e o meu descanso de domingo. A minha tarde, minha meia noite, minha voz, minha canção. Mas quando se erra insiste-se no erro. Não era amor e não ia durar para sempre.
As estrelas são precisas sempre, não empacotem a Lua nem destruam o Sol, deixem correr o oceano e a floresta e a vida; alguma coisa boa sairá de deixar partir quem nunca quis ficar. 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

A memória é um lugar estranho

Publicada em Repórter Sombra a 5/11/2018




A Memória é um lugar estranho

Eu lembro-me”, “eu faço” e “eu sou” não são afirmações tão independentes como se possa pensar numa primeira leitura. Se o nosso cérebro não conseguir integrar as nossas lembranças com a nossa própria pessoa, com os estímulos sensoriais que constantemente recebemos do exterior, com a nossa capacidade motora e com a nossa vida de relação, muitas das suas funções superiores ficam comprometidas.
Sendo a memória um sistema de processamento extremamente eficaz e sensível que codifica a nova informação, a armazena e a recupera (quando necessário), podemos dizer que se torna indispensável para a criação do nosso “eu” (gerando, por exemplo, uma narrativa interna temporal e cronológica autobiográfica) e para fornecer orientação no espaço, tempo, em relação a nós próprios e a terceiros.
Em que é que isto se traduz, na prática? Desde que nascemos, estamos sempre a aprender, com a novidade e a repetição. Estamos expostos a uma variedade quase ilimitada de estímulos externos, e à medida que as conexões neuronais se vão desenvolvendo e tornando mais complexas durante a infância, vamos adquirindo a noção de constância do eu, da separação entre eu e os outros, de inúmeras funções motoras, sendo porventura a mais complexa a linguagem.
A memória codifica tudo. O que significa codificar? Transformar estímulos físicos e químicos externos (ao cérebro) em novos padrões de conexões neuronais, quer isoladamente (codificação individual de estímulos auditivos, visuais, tácteis, ou integrada: informação espacial, geográfica, verbal, cronológica).
O processamento e o armazenamento implicam a existência de “filtros” que permitam a separação entre estímulos supérfluos e necessários, a informação que necessitamos para o dia a dia e a informação a armazenar de forma permanente.
No primeiro caso entram em jogo o foco, a atenção e a repetição, para construir memórias de curto prazo (memória processual ou de trabalho, com armazenamento limitado e duração de minutos) codificando sobretudo informações e actividades automáticas do quotidiano.
No segundo caso, a consolidação e reconsolidação da informação está ligada ao hipocampo, amígdala, corpos estriados e mamilares, estruturas cerebrais em estreita ligação com o sistema límbico e hipotálamo. Sendo um sistema responsável por emoções, comportamento e aprendizagem com ligação a estruturas vitais e reguladoras do organismo (sistema nervoso autónomo e sistema endócrino), vai influenciar em muito a formação e recuperação da memória de longo prazo.
Resumindo, a memória de longo prazo (cuja duração é potencialmente ilimitada) está associada a emoções (“positivas” ou “negativas”) e mesmo estados orgânicos. A recordação ou evocação de memórias pode ser inibida ou estimulada consciente ou inconscientemente.

Quase todos nós temos recordações expressivas de certos momentos da nossa infância (memórias que recuperamos muitas vezes ao longo da vida). No entanto, podemos ser vítimas de percepções falsas (visão, audição...) que foram guardadas como informação verdadeira, ou de informação com um peso emocional tão grande que pode ter sido subvertida, quer na consolidação, quer na recuperação.
Quer isto dizer que as nossas recordações normalmente não são completamente exactas; as memórias foram armazenadas com o filtro do nosso “eu”, na altura do acontecimento. Esse filtro é também condicionado pela idade, stress ou presença de condições físicas ou psíquicas.
Para terminar, o cérebro e a memória têm também um “horror ao vazio”. Em circunstâncias em que as memórias deixam de poder ser evocadas (não há evidência de que sejam destruídas), o cérebro produz novos dados sem qualquer coerência com a informação em falta (confabulação).
A memória, uma de muitas funções cognitivas superiores, é um lugar estranho, porque acaba por se estender do cérebro a todo o organismo, estabelecendo um sistema de coerência do próprio que quando é perdido se torna o pior dos labirintos: uma realidade alternativa da qual o sujeito deixou de fazer parte.


Pequena nota cinematográfica: um exemplo bem construído sobre processos mentais e a conservação de memórias - O Despertar da Mente (Eternal Sunshine of the Spotless Mind), 2004

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Game on

Gostava de começar com uma publicação positiva, calhou-me uma lacrimejante série de televisão. É que a vida lá fora está ruidosa, irracional, estúpida, suicidária, inflamatória. E sobretudo pouca vida a sério, só projecções numa caverna como as analogias dos antigos.
Parece que não mas cansa, todos os dias tentar seguir os nossos princípios, não entrar em rota de colisão com ninguém e simplesmente deixar passar o momento.
Deixar. Passar. O momento. Como se fosse um mosquito um segundo mais lento.
Estamos nos dias da indecisão e das decisões fatais. Tudo o que fazemos é analisado, mas sem verdadeiramente ser avaliado etica ou logisticamente. Andamos cá porque andamos cá. Com a culpa de matarmos o planeta, matarmo-nos a nós, e sermos pessoas de bem que não fizeram nada quando chegou o mal.

Foi o facebook que me roubou o tempo do blogue (livrodepoemas). Distraiu-me com os vídeos de gatinhos (e ainda distrai, mas não é suficiente). O pior vício das redes sociais é tudo estar à distância de um clique. O automatismo e o imediato. Para além da escrita começou também a roubar-me a leitura e a paciência. E assim estou a tentar mudar, andando para trás, mas conciliando os mundos se possível.

Eppur si muove disse um dia Galileu (um dos meus heróis). Uma coisa é a fé, outra a constatação das leis da física. Hoje estamos a caminhar no sentido contrário. Galileu era crente, mas não podia contestar a evidência científica à prova de dogmas.

E no entanto ela move-se. She moves in mysterious ways. She is alive.

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

This ain't us but still feels fine

Há uma palavra em inglês que resume quase tudo, cheesy. This is us é borderline cheesy, porque nos atira aos olhos todos os estereótipos da soap, mas arremata com punchlines certeiras, mesmo quando o argumento anda à deriva.
E é fácil andar à deriva com um núcleo de personagens a alargar e três irmãos improváveis que aos 38 anos (and counting) parecem tão perdidos na linha da vida.
A Mãe e o Pai são a linha condutora, os larger than life com um defeitozinho, a história de amor que ao mesmo tempo contraria e afirma o "viveram felizes para sempre".
Há demasiados observadores com uma luneta crítica (por exemplo o site NewInTown trata tão intensivamente os Pearson como um episódio do Pesadelo na Cozinha).
Aquilo que eles querem saber ( p ex a morte do Jack), parece-me uma atitude redutora para a série: há várias personagens falecidas que continuam a evoluir no seu timeline.
Ou seja, só morremos, quando todos se esqueceram de nós. É um lugar comum, tal como o do último episódio. O homem bom com que vamos casar lava a loiça. Por mais cheesy que pareça, não deixa de ser verdade.