Há
algum tempo, decidi abordar o tema da vacinação e seus detractores, os surtos
anuais de doenças infecciosas da infância que se pensavam quase erradicadas, as
consequências para a saúde pública de uma diminuição na imunidade de grupo, e a
interferência no processo de decisão de algo tão importante como o plano
nacional de vacinação, de tantos elementos “estranhos” ao processo.
Na
verdade, se uma pesquisa na internet por “vacinação” em português é
relativamente clara, mal passamos para o inglês, vemos uma web que
defende na sua maioria a não vacinação, atacando todos os pontos possíveis (e
sobretudo imaginários) das vacinas individualmente ou no seu conjunto.
A
capacidade de clarificar ou debater os argumentos dos movimentos anti-vacinas
relembra-nos que estamos numa era de negacionismo, onde parece haver mais valor
na negação de conceitos estabelecidos (seja a democracia, a ciência ou a
tolerância relativa a pontos de vista diferentes dos nossos), e na admissão
dogmática de novas “verdades” intuídas por uma nova cultura de
pseudo-informação em massa.
Relembro
um meme que encontrei, algo por acaso: “Laboratório de Pesquisa de
vacinas / 200 anos de pesquisa e desenvolvimento; Laboratório de Pesquisa
anti-vacinas / 200 minutos de intensa navegação na internet”.
Para
mim a descoberta da vacinação e de como o nosso sistema imunitário adquire uma
memória imunológica sobre os agentes infecciosos com que entrou em contacto são
dos passos mais importantes que a ciência da nossa pequena civilização já deu.
O
nosso sistema imunitário (possivelmente um dos mais complexos do organismo)
possui células de memória (linfócitos T e B). Havendo um segundo contacto com
um agente infeccioso já
“conhecido”
anteriormente pelos linfócitos, estes desencadeiam uma resposta muito mais
rápida, eficaz e dirigida.
Ao “apresentarmos” os agentes aos linfócitos
sem provocar a doença (vacinação), obtemos imunidade contra várias doenças
infecciosas com elevadas taxas de mortalidade e morbilidade, tanto na infância
como na idade adulta (onde a sintomatologia é quase sempre mais grave).
A
variolação, utilizada desde o século X na China e Índia, consistia na inalação
ou inoculação com lanceta afiada, de material purulento de doentes infectados
com varíola. Os indivíduos inoculados tinham uma forma leve da doença, embora
houvesse uma mortalidade de 3%.
E
como era essa doença, a varíola? Caracterizava-se por surtos epidémicos, sendo
muito contagiosa, causando febre, dores musculares, vómitos e um rash cutâneo
que progredia rapidamente para vesículas, pápulas e pseudo-pústulas (borbulhas
com conteúdo opaco visível, parecido com pus) por todo o corpo, evoluindo para
tecido de cicatrização desfigurante.
A
mortalidade era de cerca de 30% (superior em crianças com menos de 1 ano) e nos
sobreviventes era a principal causa de cegueira. No século dezoito a
mortalidade anual na Europa chegou a ser de meio milhão de pessoas. Os efeitos
secundários da variolação pareciam portanto suportar a relação risco-benefício.
O
conhecimento e prática da variolação espalhou-se ao Império Otomano e ao Norte
de África, acabando por no início do século dezoito já ser prática comum nas
elites europeias e nas colónias americanas. E com a prática, vieram as
primeiras controvérsias, sobretudo de carácter religioso, sendo a variolação
considerada uma operação satânica e diabólica: “As
doenças são enviadas, senão para Teste da nossa Fé, para o Castigo dos nossos
Pecados”.
Após observação de que as leiteiras quase nunca contraiam
varíola, o médico inglês Edward Jenner (inoculado em pequeno), concluiu que a
sua imunidade à doença deveria ser consequência da sua exposição às pústulas
nos úberes de animais infectados com cowpox (varíola bovina, também
designada vaccinia). Em 1796, Jenner inoculou um rapaz de oito anos com
material recolhido de bolhas das mãos de uma leiteira; após febre ligeira,
recuperou e Jenner inoculou-o com varíola. O rapaz não sofreu os sintomas
associados à variolação.
Esta nova técnica, chamada vacinação, provou ser mais segura e
eficaz que as anteriores estratégias de inoculação, e em poucos anos foi
reconhecida pela comunidade cientifica e pelos governos da Europa e Estados
Unidos da América. As objecções continuavam a ser de ordem religiosa (a
vacinação interfere com os planos de Deus e espalha dúvidas sobre a sua
omnipotência) e de bestialidade (inocular em humanos “humores” animais).
No século XIX, as melhorias no saneamento básico e os esforços
políticos para tornar a vacinação obrigatória, por vezes de maneira coerciva,
levaram a grandes protestos anti-vacinação, argumentando que era não só um
veneno, mas uma ameaça à liberdade individual, e que da competência dos
governos seria providenciar “ar puro, água límpida e alojamentos decentes”.
Nos finais do século XIX e no século XX, compreendendo já a
causa (agente infeccioso) de muitas epidemias, criaram-se várias novas vacinas,
com bactérias ou vírus vivos ou inactivados, mortos, toxinas, ou apenas as suas
porções mais imunogénicas (que conferem mais imunidade), e várias doenças
infecciosas foram controladas com sucesso. Para além disso, as vacinas foram-se
tornando mais eficazes (imunogénicas) e seguras (com menos efeitos
secundários).
A varíola foi a primeira (e única até à data) doença infecciosa
humana totalmente erradicada a nível mundial em 1980.
Actualmente 13 doenças são prevenidas através do Plano Nacional
de Vacinação, uma iniciativa da Direcção Geral de Saúde, que em Portugal teve o
seu início em 1965.
A vacinação planeada a nível mundial contribuiu para salvar
milhões de vidas, calculando-se que apenas nos Estados Unidos tenha prevenido
100 milhões de casos de poliomielite, sarampo, rubéola, papeira, hepatite A,
difteria e tosse convulsa desde 1924.
A vacinação providencia também uma forma de protecção indirecta
– Imunidade de grupo – quanto maior a proporção de indivíduos numa comunidade
se encontrarem imunizados, menor a probabilidade dos que não estão imunizados
entrarem em contacto com um individuo infeccioso.
Ora isto torna a vacinação não só uma opção individual, ou
melhor uma opção que altera o futuro da vida dos nossos filhos, mas também da
saúde da comunidade. Os indivíduos não imunizados podem não ter escolhido não
ser vacinados. Podem estar a fazer quimioterapia ou terapêuticas que suprimam a
imunidade, ou ainda terem formas primárias ou secundárias de falência
imunitária.
Por outro lado, em locais onde predomina a opção de não vacinar
aparecem surtos que podem afectar comunidades inteiras com baixa imunidade de
grupo, e alastrar a zonas bem diferentes do país ou do globo, dada a fácil
mobilidade actual.
Partimos do princípio – eu partia do principio – que o que
acabei de rever até aqui são conceitos básicos que qualquer adulto deveria ter
em mente ao tomar uma decisão ponderada. Acontece que os adultos de hoje não
conhecem as doenças porque não as tiveram e só valorizam os aspectos negativos
que saltitam na web todos os dias.
Eu nasci nos anos 70 e cumpri o PNV à época. E fui mais a
excepção que a regra. Após a primeira inoculação da vacina da varíola
desenvolvi um quadro meningiforme, que foi tratado prontamente e interpretado
como alergia cruzada com a proteína do ovo (estava na fase da diversificação
alimentar e tinha intolerância ao ovo).
Não fiz a vacina do sarampo (ainda não havia VASPR,
sarampo-papeira-rubéola), que também era cultivada em embriões de galinha. A
pediatra pensou, eh, tem muito tempo para apanhar sarampo em miúda. Acontece
que não apanhei, e em boa verdade, até hoje não vi frente a mim nenhum doente
com sarampo. Das célebres doenças da infância só conheci a papeira (muito
chata, mas passageira) e mais tarde uma varicela “light”.
Antes de entrar para a faculdade levei finalmente a vacina do
sarampo. Por essa altura começaram a aparecer surtos episódicos de sarampo.
Posso afirmar que tive pouca experiência com estas doenças
tradicionais, mas isso nunca me impediria de vacinar os meus filhos. Não me
cabe a mim por o futuro deles em risco, nem o de pessoas dentro da comunidade
que podem não ter imunidade por outras causas que não a negação de um
procedimento simples e seguro.
Não se pode pedir a indivíduos e crianças saudáveis que se
submetam a injecções profilacticas que alterem o seu estado de saúde. E repito,
os casos de efeitos secundários graves são mesmo muito raros.
Não vou responder a listas sem fim de acusações a vacinas, mas
custa-me perceber como um estudo fraudulento com vinte anos (1998), condenado
por todos os pares, sugere uma ligação entre a VASPR e o autismo perfeitamente
irreflectida e irresponsável tenha alcançado o nirvana da net e sido acolhido pela comunidade anti-vacinas
como um maná. Uma manequim americana com um filho autista percorreu o caminho
do programa da Oprah Winfrey e do Dr Oz, e alimentou o mito.
A realidade é tão mais simples. O autismo tornou-se agora um
grupo largo de doenças, não tem ainda causa provada, mas é muito mais
diagnosticado. Não há relação, nem com excipientes, nem com a vacina.
Há também defensores do equilíbrio com a natureza que acham que
o plano de vacinação é um “shot” imunitário que vai desequilibrar as crianças.
Bem, nestes últimos 30 anos isso não aconteceu.
E faltam ainda os fanáticos da conspiração: o conluio
(“collusion”, que interessante) entre a Big Pharma, o governo e os médicos.
Curiosamente, nos EUA, tenta-se empurrar para baixo da mesa um real conluio da
Big Pharma, que favorece a utilização de analgésicos opioides em dores
crónicas, que leva milhares de americanos a tornarem-se toxicodependentes. Para
estes, não parece haver teoria da conspiração. Nem para a National Rifle
Association...
O que pode ter mudado, para as pessoas mudarem tanto? Por um
lado, a palavra de um médico já não tem o peso da experiência e do
conhecimento; é apenas mais um prestador de serviços. O acesso à informação sem
crítica e sem filtro não conduz à democratização do conhecimento, mas sim à
nivelação pelo que tem mais visualizações (habitualmente o mais controverso e
irrefletido).
Falta-nos também civilidade, cultura e cidadania, e sobra-nos em
egoísmo. Os pais não querem ter trabalho com filhos doentes e acham que as
vacinas os podem por doentes, porque essencialmente são incultos em história
recente, em relacionamentos humanos, e já agora, nalguns princípios básicos de
saúde pública.
A vacinação é um bocadinho de saúde que (ainda) é oferecida a
todos. Aproveitem enquanto existe.